sábado, 21 de agosto de 2010

A ÚLTIMA VIAGEM DE JOSÉ SARAMAGO

A última viagem de Saramago


      Após 230 horas de tomadas em três anos de produção, vem ao mundo o filme “José&Pilar”, que resulta ser um documentário sobre os últimos dias de José Saramago, dirigido pelo jovem português Miguel Gonçalves Mendes, com lançamento previsto para 16 de novembro de 2010, simultaneamente no Brasil, na Espanha e em Portugal, desenvolvido em associação com a produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles, e a espanhola El Deseo, de Pedro Almodóvar, do qual um aperitivo de mais ou menos 40 minutos foi apresentado na Flip, no final da noite deste sábado, dia 7 de agosto, onde se pode ver e ouvir um escritor em plena atividade, cheio de ideias e sagacidade, apesar de encontrar-se às vésperas da morte, enquanto as câmaras o acompanham a toda parte, de sua Lanzarote ao Rio, ao México, à Finlândia, aonde mais houvesse leitores ávidos para vê-lo e jornalistas excitados para lhe repetir as mesmas perguntas de sempre, às quais ele responde quantas vezes queiram com suas descrenças, que soam como idiossincrasias entre os que crêem em deuses e heróis. Recebe impropérios, maldições. E muitas juras de amor. Quando começaram as rodagens, ele ia a meio na tarefa de escrever “A Viagem do Elefante”, que conta a história do paquiderme, chamado Salomão, com o qual o então rei de Portugal, D. João III, casado com Catarina da Áustria, presenteou o arquiduque Maximiliano II, no século 16. Em meio a muitos entreveros, desavenças e tolices de nobres, militares e religiosos, Salomão parece o mais sábio entre os personagens que se cruzam na travessia para o norte, em direção a Salzburgo. Saramago teve a ideia do romance ao entrar por acaso no restaurante Elefant, na cidade austríaca, uma, como se diz, casa de repasto em estilo moderno, internacional, “clean”, onde se serve a comida ocidental contemporânea. “O que faz o elefante? Anda, anda, anda e anda”, diz o escritor num trecho do filme. E há Pilar, a companheira da maturidade. Personagem forte de espanhola, em contraposição à serenidade do velho autor a caminho da morte, como caminha para o norte o sábio elefante Salomão. O filme acompanha a execução do livro, cujas dificuldades não lhe chegam a causar embaraço, e Saramago diz que o melhor é deixar que o tempo passe e as coisas aconteçam e enfim o livro se faça. Enquanto isso, ouve Mozart jogando paciência no computador. “Para que não entre o Alzheimer”, justifica-se. No embate entre o homem e o tempo, desenrola-se sutilmente o temor de que o escritor não consiga terminar o romance antes que chegue a morte, aquela mesma que ele havia domesticado no romance “As Intermitências da Morte”, fazendo-a render-se ao amor. E há Pilar, que o encontrou quando ele tinha 65 anos, ela 28 mais jovem, e o acompanhou fielmente até o fim. “José&Pilar” também fala desse amor, por palavras, dedos entrelaçados, um malicioso tapa no traseiro capturado quase clandestinamente pela câmara, Pilar amadurecendo enquanto José envelhecia, mas de um envelhecimento cheio de vida, de reflexões vigorosas. Conversam muito, ele falando espanhol, quem sabe para honrar o território das Canárias onde fica Lanzarote, e o espectador se lembra que o escritor abandona seu idioma materno para melhor se entender com ela. “Perdi o emprego [de diretor-adjunto] no Diário de Notícias de Lisboa e tomei a decisão da minha vida”, conta, no filme. A decisão, diante do fato de que, já maduro, dificilmente conseguiria outro emprego de jornalista, foi a de tentar viver da literatura. O ano, 1975. Escreve bastante a partir de 1976, mas a obra que o ergue definitivamente entre os grandes vem a lume em 1980. “Levantado do Chão”, mais do que livro e metáfora, é o ponto de virada na literatura contemporânea em língua portuguesa. “Até então, eu tinha livros, mas não tinha uma obra”, comenta. O filme começou a ser produzido em 2008. Saramago teve tempo de terminar “A Viagem do Elefante” e ainda produziu “Caim”, mais uma vez surpreendendo a crítica e arrebatando os leitores. Morreu em junho de 2010, aos 87 anos. Serenamente, a dormir. Deixa-nos muitas horas de sua intimidade, de seu gênio criativo, de sua visão de mundo. E para onde iria? Por sua vontade, suas cinzas repousam sob as pedras do jardim, na casa de Lanzarote, em meio ao impressionante cenário cinzento da ilha vulcânica. Cinzas do homem em meio às cinzas do tempo. Para onde mais iria, afinal, ele que durante boa parte do filme repete sua convicção de que após a morte há apenas o nada, e que sua vida, não tendo tido qualquer coisa de interessante, nada de agitação como as daqueles que viveram na boemia, porque afinal o céu não existe e que a partir do momento em que se inventou o pecado, o inventor passa a ter o poder sobre os outros, e mesmo não havendo céu e inferno há quem creia que existem, e que tudo acaba, hoje estou aqui e já não estarei, diz, e sente como uma perda o acabar de cada dia, deve ser isto a velhice, mas afinal o universo nem sabe que existimos, o universo não saberá que Homero escreveu a Odisséia, ele não queria estar na pele da Pilar, ela é uma espécie de Santa Teresinha de Jesus – vê, ouve e não cala – ela, que foi monja teresiana. Há também, na exibição do filme, o diretor Miguel e um apresentador, protagonistas apenas para os créditos, comparam-no a Camões e Machado de Assis, Saramago teria dado boas gargalhadas, que Saramago ainda fala e deixa seu último paradoxo: ele, que não crê no depois, olha serenamente para a câmara e diz: “Pilar, encontramo-nos em outro sítio”.

Festa Literária Internacional de Paraty 2010

de 4 de agosto, quarta-feira

até domingo, 8 de agosto